Ou o que a pandemia nos ensinou
Anna Carolina Lo Bianco
Camila C.Chafic Haddad
Jamille Lima dos Santos
Priscila Mignot Melo
Raquel Cristina Boff
As mais de 700 mil mortes causadas pela pandemia da Covid19, no Brasil, nos mostram e, mais do que mostram, nos convocam a exercer um dever que temos – o dever de lembrar. Lembrar e refletir sobre o que fica de toda a experiência trágica que tivemos; como cada um, cada uma foi afetada e que marcas o sofrimento que é individual deixa no tecido social. Trata-se, antes de tudo, de encararmos o que a pandemia deixa emergir, o que deixa aflorar acerca da “atitude que temos para com a morte”, que aliás vem a ser o título de um texto freudiano de 1915.
A pandemia tornou mais evidente o que fere o tecido social para além dela própria, do que em si ela causou. Pois nos trouxe a notícia de uma sociedade desrespeitosa em relação à morte, na qual se observa quase nenhuma “deferência” para com ela (LEVINAS, 1993, p.28). Desvelou características de nossas políticas de morte, das condições de uma sociedade suicidária, que até não deixava de ser considerada em vários momentos, em várias instâncias, mas é como se a pandemia nos desse uma lupa e com ela víssemos emergir o real de forma muito crua.
No presente artigo, partiremos do trabalho que fomos levadas a realizar em instituições hospitalares durante o ano de 2020. Veremos como intervenções de características essencialmente clínicas, voltadas para pacientes e equipe profissional, que se encontravam afetados pelas questões da morte durante a pandemia, não são distantes, ou são até mesmo contínuas com as políticas e têm efeitos diretos na sustentação do tecido social.
Parte I
Os estudos sobre a morte no Ocidente hoje, como o de Ariès (1917), vêm mostrando ao longo dos anos mudanças na maneira de vivermos com a morte ou de vivermos a morte. Inúmeros outros autores, como Redecker(1917), que escreve sobre o eclipse da morte, falam da sua “dessimbolização” (p.21). Como a morte é um fato de linguagem – os animais perecem, não morrem, e entre perecer e morrer há uma boa distância que vai ser preenchida pela vida – ela não existe fora do símbolo. E, na pletora do mundo das imagens e do espetáculo, cada vez se tem menos chance de simbolizá-la, o que a torna insuportável. Trata-se, então, de cada vez mais aboli-la. Ao falarmos da morte em termos científicos, biológicos, médicos, que implicam em sua foraclusão, ela é deixada meio à margem, nas morgues no subsolo dos hospitais, nos necrotérios, ou nos crematórios que notadamente servem para nos desembaraçarmos dos cadáveres.
É justo neste cenário, em que a “morte da morte” se coloca, que em março de 2020 somos abalroados pela pandemia de Covid19. E, sobretudo para quem trabalhava e trabalha nos hospitais, nas clínicas, nas instituições de saúde em geral, a pandemia se fez sentir de maneira mais aguda, mais drástica.
É, pois, com o que enfrentamos nesta época, que partimos para a presente reflexão necessária sobre o que vivemos desde então. Colhemos muitos testemunhos que é preciso que se escute e se lhes dê lugar, porque, de uma certa forma, esses testemunhos são contrários ao que talvez seja a nossa atitude ordinária com a morte nesta sociedade, e então são testemunhos de resistência para enfrentarmos a cultura de morte que, no entanto, vemos vigendo, em nosso país particularmente. Há sempre o perigo de que o que vivemos na pandemia se apague, por isso o “dever de escrever” (JAMART, 1998) para lembrar.
A pandemia nos pegou muito desprevenidas, por mais que para nenhum epidemiologista houvesse assim tanta surpresa no aparecimento de um vírus letal de disseminação incontrolável. Mas, se tomamos um serviço hospitalar, com seu cotidiano, sua rotina, seus protocolos, logo se vê que a iminência de um vírus era muito remota, não se colocava como questão. E, logo que a pandemia se instalou, não foram poucos os serviços de psicologia que, surpreendentemente, chegaram mesmo a considerar que, dada a falta de equipamentos de proteção, que eram prioridades das equipes de enfermagem e de medicina nos primeiros dias do aparecimento da doença, a equipe de psicologia podia se dispensar de continuar atuando, pelo menos “por uns tempos”.
Em seguida, os serviços, principalmente os que não estavam em hospitais que tratavam da Covid, diziam: “os profissionais devem seguir a sua rotina normalmente”. Mas, ao mesmo tempo que se falava da continuidade da rotina, os profissionais viviam outra realidade. O testemunho de uma das autoras do presente artigo, no hospital em que trabalhava à época, fala de como era impossível não se deixar afetar pelo que acontecia em seu redor:
“Enxergávamos dia a dia o invisível e o onipresente coronavírus. Hipertenazes em nossos cotidianos, saíamos a cada plantão com os corpos doloridos, sob a pressão da gravidade do que acontecia e incidia em cada uma de nós. Retornávamos a nossa casa contando a passagem do tempo atentamente, observando a cada instante se havia qualquer mudança no próprio corpo, qualquer vestígio sintomático que alertasse para uma possível presença do contágio; insegurança vivida até o próximo plantão, em que uma nova contagem começava, sobrepondo-se àquela já em curso, enlouquecendo-nos e tornando evidente o impossível da contabilização imposta pelo risco do vírus: ‘quantos dias após o contato com o vírus?’, nos perguntávamos, 5,1,6,2,7,3,8… e assim esperávamos pela notícia do contágio. Seguíamos, um dia após o outro, instaladas no mal-estar”.
Esse mal-estar aparece em muitas narrativas que, referidas a recortes pontuais do cotidiano nas instituições de saúde, refletem os cenários espantosos e quase sempre desoladores que tocavam os trabalhadores na saúde durante o período.
Outra das autoras deste artigo narra seu “susto com o número”. Havia ficado encarregada de fazer a lista de profissionais do hospital em que trabalhava, que estivessem afastados por estarem confirmados ou suspeitos de contaminação pelo vírus, para lhes oferecer uma escuta.
“Sabia previamente de muitas e muitos colegas que estavam afastados, mas constatar o que já sabia, traduzido em números, foi muito diferente”. E continua: “Diante do número, é muito menos possível contemporizar, flexibilizar, assumir uma posição otimista ou pessimista. […] Passado este primeiro susto, o que fiz em seguida foi ver o que o número contava: quem estava ali sendo contado? Cada um tinha uma história singular e fui lembrando das pessoas, dos encontros com elas, da voz delas, mas o que sobressaía naquele momento é que cada uma delas fazia contar mais um na soma total. Foi uma experiência diferente da de ter notícia aqui e ali de um colega doente, e diferente, também, de ouvir diariamente na televisão o número de contaminados e de mortos ao redor do mundo e especialmente no Brasil. Me lembrou o que a Jamart [1998, autora do texto Du devoir d’écrire] traz, ao citar o livro de Helène Piralian, Genocídio e transmissão: salvar a morte. Referindo-se ao genocídio, ela diz que, além da morte coletiva de sujeitos singulares, será o simbólico ele mesmo e a transmissão que estarão em questão. ‘Morte coletiva de sujeitos singulares’. Fiquei com este ponto. O que do simbólico e da transmissão fica em questão aqui na pandemia de Covid? […] O que fica em questão quando me deparo com este número? Ao contrário do que sempre faço quando encontro o caso, que é tratá-lo como um caso para poder sustentar um trabalho que é único, a cada vez, agora, ao ver a lista, tive necessidade de somar. Não foi possível fazer o que antes fazia, partir rapidamente do todo para o singular. Foi preciso levar o novo dado em consideração, ficar com ele, com o todo, com o número. Apareceu para mim, neste ponto, o que considerei um enigma. Como tratar o todo?”
A situação mesma nos colocava uma indagação sobre como incluir nas formulações que algo do coletivo tem incidência direta sobre cada um, mas também nos punha face à questão de como dizer que cada um compõe a matéria de que é tecida a vida em sociedade? Foi tomadas por estas interrogações que ouvimos outro testemunho, dado também por uma das autoras do presente escrito.
Este novamente se situa num serviço que não era dedicado ao atendimento da Covid; tratava-se agora de um hospital em cuja UTI neonatal veio a falecer uma bebê com suspeita de infecção pelo vírus. Esta categoria – “suspeita” – abriu para um mundo de incertezas. Não se sabia se ela tinha ou não o coronavírus, mas de qualquer forma não se podia tratar aquela morte da maneira habitual. Por outro lado, anteriormente, o protocolo que a Unidade havia construído antes da pandemia, com a participação ativa da equipe de psicologia, oferecia a garantia de que haveria um lugar para que os pais da bebê se encontrassem com a perda da filha, tivessem a chance de estar em contato com o corpo morto, e se despedissem da filha de algum jeito. A seguir, um relato da conversa da psicóloga com a enfermeira, pelo telefone:
A enfermeira fala: “Acabei de receber as orientações da coordenação do serviço, estava até agora procurando saber o que fazer com o corpo”.
A psicóloga comenta: “Nossa, é a primeira morte por suspeita de coronavírus aqui em nosso serviço”.
A enfermeira: “Espero que seja a primeira e única. Os pais não vão poder ver a bebê!”
“Não vão poder ver?!” (a psicóloga fala, interrogando e repetindo para confirmar a afirmação contundente da enfermeira). E continua se dirigindo à enfermeira: “Vamos precisar oferecer para esses pais alguma forma de acesso ao corpo da filha, alguma forma de acesso à morte dessa bebê. Existem hospitais em que os familiares podem ver através de um vidro, existem outros que fazem por filmagem… Não tocar, não segurar no colo já é muita perda, sequer vê-la, não dá. Não há chance de um processo de luto sem o registro da morte”.
A enfermeira: “Não temos essa sala com vidro. Não nos preparamos para isso”. E repete: “Os pais não vão poder ver”.
A psicóloga lembra: “Mas alguém vai precisar cuidar desse corpo, alguém vai ter acesso a ele, quem vai ser?”
A enfermeira, então, diz: “Eu e uma técnica de enfermagem”.
Momento em que a psicóloga sugere: “Então, você pode fazer uma foto da bebê. Faz uma foto do corpinho todo, uma foto do rostinho e uma foto já enrolada no cueiro. Usa um cueirinho dela para embrulhá-la”.
Com o que a enfermeira concorda: “Claro. Eu faço e mando para você”.
Este é um trecho de uma situação que se desdobra de várias maneiras, não temos como relatar todas as interessantes implicações desta conversa, mas o que podemos ressaltar é que testemunhos como estes são cruciais e nos servem para encaminhar uma resposta às questões sobre o coletivo e o individual que levantamos acima. Tratou-se aqui de uma situação em que, no mesmo passo em que se acolhia o singular sofrimento de uma família enlutada, se fazia uma reverência à morte. Mesma reverência que vem se perdendo em nível da experiência coletiva, especialmente em nosso país. Tratou-se, portanto, de uma intervenção que foi clínica e que permitiu o reforço do tecido social que vemos se esgarçando a cada vez que o cuidado com a morte ou com os mortos é menosprezado.
A partir de narrativas como as que apresentamos até aqui, vemos que nossa atitude com a morte determina as condições para o luto – e o luto tem um lugar fundamental na sustentação do laço social. A impossibilidade de realização do trabalho de luto está na base de um dilaceramento do tecido social, de consequências desastrosas para a sociedade. Retomaremos estas considerações mais adiante.
Antes, porém, vale a pena mencionar o clássico de Marcel Mauss (1969), A expressão obrigatória dos sentimentos, quando ele traz os dados etnográficos de povos originários da Austrália. Referindo-se ao choro e a outras expressões orais, afirma que é preciso emitir os gritos e os cantos porque todo o grupo os entende. E acrescenta que se trata de mais do que uma manifestação dos próprios sentimentos, pois neles temos um modo de manifestá-los aos outros. Descreve as cerimônias públicas de funeral e sua regulamentação muito precisa para mostrar o lugar que o luto ocupa nas sociedades e como o reconhecimento da morte articula e estrutura a rede social.
Os estudos de Mauss nos permitem fazer uma observação fundamental, quando se trata do tema do luto e da morte. Eles apontam para o fato de que o trabalho de luto apesar de ser feito de maneira absolutamente singular, a cada caso, traz um paradoxo aparente, porque não é por ele ser um trabalho individual que ele deixa de ocupar um lugar fundamental na sustentação do laço social. Entendemos o desaparecimento de alguém como um evento que diz respeito e se inclui na cadeia de elementos que constituem o tecido social. É o luto experimentado a cada caso que vem nos dar ideia do que a morte de uma pessoa representa e exige de trabalho para que a teia que se rompe, com a sua saída da cadeia de relacionamento, volte a se recompor.
Então, se, como vimos, problemas intrínsecos à pandemia dificultavam as condições para o estabelecimento do trabalho de luto, se certamente as condições para o luto estavam dificultadas, estes testemunhos que trazemos mostram que há, como de fato houve, formas de se contornar os obstáculos impostos por tais problemas. É, pois, crucial encontrarmos as formas de resistência ao apagamento da morte. E, neste ponto, se situa a necessidade de reflexão, de relato e de transmissão sobre o que a pandemia nos ensinou e continuará a nos ensinar.
Parte II
Poderíamos ficar com o testemunho destas intervenções, enfatizando a sua efetividade na reparação ou, pelo menos, na redução de um dano, de um rompimento sem tamanho na malha social, como o causado pela pandemia do novo coronavírus. Mas é necessário avançarmos aqui, ainda, para o que a pandemia também desvelou, especialmente no âmbito do que podemos considerar as políticas de morte que caracterizam a sociedade brasileira. Veremos em que contexto a ação de tratar com dignidade, respeito e reverência o momento dos que sofriam com as perdas e o luto que a pandemia impunha, num serviço de saúde, foi e é uma forma de resistência aos regimes contemporâneos de poder. Não pretendendo, é obvio, fazer um ensaio de filosofia política, visamos a manter no horizonte das práticas hospitalares a sua dimensão ética e política, retirando-as da série de aplicações protocolares de técnicas, mais ou menos automatizadas, impessoais e normativizadoras.
Voltamos a tomar a observação de Freud (1915/1996), quando constata que a atitude moderna com a morte, esta mesma que herdamos na contemporaneidade, e à qual nos referimos acima quando falamos da tentativa de esconder a morte, rebaixa a sua condição de necessária e inexorável, passando a considerá-la uma contingência. A cada vez, a cada morte, um inesperado se apresenta. E, com esta concepção de morte, a afastamos de nossa vida.
Porém, escrevendo durante a Primeira Guerra Mundial, o mesmo Freud nota que há um momento em que esta concepção da morte como contingente é posta em questão. Afirma ele: com a guerra, este tratamento convencional da morte é barrado. “Esta já não se deixa desmentir; é preciso crer nela. Os homens morrem realmente; e já não indivíduo a indivíduo, mas multidão deles […] em um só dia. Já não é uma contingência.” Esta observação freudiana nos chega como uma advertência fundamental para encararmos o caso brasileiro, ainda que não só ele. O menino que desce de casa para a escola e, dia sim dia não, se depara com um corpo estendido no chão, vítima sobretudo da violência policial, como é o caso de inúmeros meninos nas periferias das grandes cidades neste país, já não podem ter a morte como contingente. Ele tem uma relação com a morte que, por seu excesso, invade a vida e tem poucas condições de ser deixada de lado, ou simplesmente eclipsada.
A crença de que somos uma nação pacífica, que se difundiu um dia, já não se sustenta mais, e mesmo a comparação internacional nos coloca como um país violento. Tomando os dados sobre homicídios no mundo, somos “o país com maior número absoluto de homicídios do planeta” e, apesar de sermos “uma população equivalente a 2,7% dos habitantes do planeta”, respondemos “por cerca de 20,5% dos homicídios que foram cometidos em 2020” (FBPS, 2022, p.30). A violência urbana que se generaliza encontra nas ineficazes políticas de segurança pública uma de suas causas mais determinantes. Mas, se tais políticas são ineficazes, as vítimas do descuido que elas perpetram são nitidamente identificáveis e alvo seguro desta ineficácia: a taxa de homicídio de pessoas negras, segundo o Atlas da Violência 2021, não acompanha o decréscimo medido no índice geral de homicídios do país. “Entre 2009 e 2019, as taxas de homicídio apresentaram uma diminuição de 20,3%, sendo que entre negros houve uma redução de 15,5% e, entre não negros, de 30,5%” (IPEA, FNSP & IJSN, 2022). Esta diferença por si só já chama a atenção, quanto mais se formos ver que em números absolutos houve um aumento de 1,6% de vítimas de cor negra, no período.
Entre as razões deste fenômeno, que certamente tem suas raízes em nossa história marcada pelo escravagismo, em meio às políticas de segurança pública mencionadas, está o braço da justiça criminal que, com as instituições policiais, opera reproduzindo estereótipos raciais e de preconceitos sociais que fazem da população negra o objeto de suas ações. Portanto, num cenário de extrema violência urbana, a violência policial é a ponta de lança da violência de Estado. Aliás, como relata Lins (2023), ao mencionar a fala de um de seus entrevistados, “o único braço do Estado que chega lá é a polícia” (p.202), referindo-se à presença ostensiva das forças policiais num complexo de favelas do Rio de Janeiro, justamente quando muitas outras necessidades e direitos deixam de ser atendidos pelos poderes públicos.
As operações policiais, como são reportadas pela mídia, “são uma atividade rotineira na vida de moradores da periferia” (como relata o mesmo entrevistado) e constantemente deixam um rastro de morte. A diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado (2023), ressaltando a marca de 1000 mortos em operações policiais desde 2016, “destaca o custo social da alta letalidade” e afirma que o
Rio de Janeiro parece ter normalizado chacinas com mais de 20 mortos em operações policiais. Apostamos nas mesmas soluções – o tiro – há muitos anos. A pergunta que fica é: estamos mais seguros? Obviamente, não. O que temos são policiais e moradores encurralados, gerações de crianças traumatizadas e cidades que se acostumaram com tiroteios e tudo que eles acarretam: escolas fechadas, trânsito interrompido, cenas de violência na televisão. Do ponto de vista da segurança mesmo, nada mudou”. [1]
Os números, mas não apenas eles, mais uma vez aqui, desvelam para nós a presença da morte que não se pode negar. A inexorabilidade da morte no cotidiano das favelas e das periferias das grandes cidades brasileiras obriga a que ela seja encarada sem rodeios. Os inúmeros movimentos das mães de jovens assassinados dão prova da impossibilidade de manter a impressão de que a morte é um acaso que as atingiu, e que poderia ser de uma alguma maneira individualizada e atribuída a um dado contingencial.
O que, porém, se coloca como corolário dessa realidade incontestável das periferias dos grandes centros metropolitanos, mas não apenas neles, é a atitude de absoluta indiferença com a morte, que mantém e agencia as políticas de segurança de Estado. E, ao falarmos de indiferença com a morte, é a indiferença com a vida que vem à cena.
Como pergunta Butler (2012/2018): as “vidas de quem não importa como vida não são reconhecidas como vidas, ou contam apenas ambiguamente como vivas?” (p.215). Pergunta que nos conduz de imediato para as questões da biopolítica que a tese foucaultiana introduziu quando se trata da gestão das populações e de suas condições de vida.
Butler (2012/2018) fala da articulação de poderes que organizam a vida, “os poderes que diferenciadamente descartam vidas à condição precária, […] que estabelecem um conjunto de medidas para a avaliação diferencial da vida em si” (p.215). E algumas vidas são relegadas a uma condição de tal precariedade que passam a não ser mais passíveis de receber investimento, passam a não ter valor. Sendo assim, não são protegidas, podem ser perdidas, podem sofrer qualquer tipo de dano. E, se não valem a pena, não há porque se fazer o luto da perda dessas vidas. São, portanto, vidas que não são dignas de luto (ungrievable).
Certamente, essa questão se torna mais aguda para alguém […] que já se compreenda como uma espécie dispensável de ser, que registre em nível afetivo e corpóreo que sua vida não é digna de ser salva, protegida ou valorizada. […] Se acontecer de não ter certeza de que terei comida ou abrigo, ou de que alguma rede ou instituição social me apoiará se eu cair, então venho a pertencer ao indigno de luto (p.216).
Ou seja, a vida de quem não conta com qualquer apoio é vivida como tênue, precária, e as pessoas de vidas precárias (diríamos antes precarizadas), podem até se lamentar umas pelas outras, mas este lamento se dará “à sombra do público” (p.216).
As consequências que a autora tira desta precarização que leva à “morte social” (expressão de Orlando Patterson, citado por Butler, 2012/2018, p.218) são drásticas, mereceriam ser acompanhadas, mas excedem um pouco nosso objetivo no presente artigo. No entanto, revelam que, quando as populações são abandonadas (e voltamos aqui ao comentário citado acima, de que o único braço do Estado presente nas favelas é o braço armado), as vidas passam a ser consideradas indignas de serem vividas.
As contundentes análises de Butler, podem ser aproximadas do conceito de necropolítica, formulado por Mbembe (2018). O autor elabora as questões relativas ao exercício do poder de morte que se instaura legitimamente no espaço político e encontra respaldo na norma vigente.
O braço armado do Estado, para continuarmos com a metáfora, é usado para provocar a destruição máxima das pessoas e criar “mundos de morte” (p.71) em que as populações enfrentam condições de vida que as torna “mortas-vivas” (p.71). Mbembe (2018) se reporta a Arendt para demonstrar como as políticas de morte, assim instituídas nas sociedades, aniquilam a alteridade e são também políticas de raça.[2] Trata-se aqui do racismo que autoriza uma tecnologia “que permite o exercício do biopoder, ‘este velho direito soberano de matar’” (FOUCAULT, citado por MBEMBE, 2018, p.18). Esse poder que se encarna num campo biológico que domina e controla. “Esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros” (p.17).
Neste ponto, chama a atenção a figura do “bandido”, na cultura carioca sobretudo, mas não ausente no resto do país. O bandido de hoje é visto como o Outro a ser combatido, significa a ameaça à minha vida, que deve ser eliminado para que as chances de que eu viva segura sejam garantidas. A execução do bandido resume toda a indiferença com a morte. E justifica todo o arsenal mobilizado e a razão da máquina e da burocracia do Estado, que ativam os procedimentos de praxe para aniquilá-lo. O bandido, que é quase sempre um negro ou quase negro, é o inimigo ficcional que, agregando os estereótipos racistas, justifica os procedimentos letais executados pelo Estado. Lins (2023) lembra o que qualifica como a “famosa crítica ao sistema de justiça apresentada por Michelle Alexandre (2018)” (p. 190), que mostra o uso de categorias como “criminoso, bandido e meliante” que são apenas substitutos para o que deixou de ser aceitável, por fazer menção explícita à raça; indicam, portanto, uma falsa neutralidade racial.
A caça ao bandido, no entanto – aprendemos isso em nosso cotidiano de invasões e chacinas –, mal disfarça a instauração de um mundo violento. Mundo de mortes no qual toda a sociedade se encontra envolvida, a despeito de um certo desconhecimento por parte das belas almas que acreditam que, apesar de tudo, “a vida é bela”. Principalmente em seu redor encarcerado e protegido, o assassinato parece só entrar contingencialmente.
Mas, aqui, ainda uma vez podemos recorrer a Mbembe (2018), quando na esteira da análise foucaultiana menciona um “Estado suicidário” (p.19). “Para além da necropolítica”, como observa Safatle (2020), outras circunstâncias se acrescentam que, podemos supor, se desdobram a partir do Estado racista e do Estado assassino, que afetam o tecido social em seu conjunto. O termo ‘suicidário’, neste ponto, nos lembra a destruição imposta à própria tessitura social de um Estado que pretenderia proteger alguns e aniquilar outros. Então, a necropolítica se estende para além de seu projeto de matar ou, talvez melhor, ao levar a cabo o mesmo mandato mortífero, se exerce por outras vias que vão além dos homicídios sumários das populações periféricas. Seus efeitos podem ser sentidos também em medidas que visam aos resultados aparentemente apenas econômicos, mas que afetam em cheio as condições de saúde e de vida das populações. Neste ponto, as medidas que afetaram o funcionamento institucional, o desmantelamento que se procedeu em sistemas de saúde, em sistemas educacionais e de moradia, ou de distribuição de terras, principalmente durante a pandemia, parecem ser corolários e acompanhar os mundos de mortes que são criados pela política de morte.[3] Estes são ataques ao tecido social próprio, cuja característica é a fragilização e o esgarçamento desse tecido que mal sustenta bolsões inteiros de vidas mortas ou quase mortas.
Finalizando, podemos dizer que a situação limite de pandemia contribuiu para que, o que está dado na vida diária de milhares de pessoas, nas favelas e periferias, pudesse vir à tona de forma inconspícua. É preciso manter vivo o testemunho do que vivemos na pandemia, para resistirmos às políticas de morte que insistem em se instalar na vida social. O testemunho do que sustentamos nestes tempos, ainda que pareça se referir a intervenções estritamente clínicas nas instituições, de fato pode ser considerado no escopo de uma intervenção política com efeitos diretos na sustentação do tecido social. Mostra, ademais, a responsabilidade que temos de, a cada ponto do exercício de nosso ofício, fazermos valer a reverência para com as vidas que compõem o laço social.
*Este artigo é resultado do trabalho desenvolvido, nos anos de 2020 e 2021, pela Oficina de Psicanálise nas Instituições de Saúde do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, da qual fizeram parte também Claudia Malvezzi, Juliana Barbeiro, Lucimara Rase, Erimaldo Nicácio, Priscila Gribel, Ana Clara Zonenschein, Juliana Marinho dos Santos, Carla Tell, Nathalia Silveira, Renata Martins, Barbara Amaral de Souza, Gabriela Serpa, Carolina Martins, Juliana Godoy, Ursula Possolo, Joana Arbex e Maria Ormy.
[1] Quase desnecessário lembrar aqui, por ser do conhecimento de todos, as inúmeras invasões de áreas residenciais nas favelas e morros das cidades ocorridas nos últimos tempos, culminando com a chacina ocorrida no Jacarezinho, no Rio de Janeiro, quando a Polícia Civil realizou uma operação, em maio de 2021, descumprindo as determinações do STF, que proibiam as operações nas favelas cariocas, exceto em casos excepcionais, durante a pandemia. A Operação visava cumprir 21 mandados de prisão, mas terminou cumprindo apenas três e resultou na morte de 28 pessoas; algumas, segundo narrativas dos moradores, por execução (IPEA, FBSP & IJSN, 2022).
[2] “Ao analisar as estatísticas de 2020, encontramos que 78,9% das vítimas eram negras, percentual semelhante ao encontrado em 2019, quando 79,1% das vítimas eram negras. A estabilidade da desigualdade racial inerente à letalidade policial ao longo das últimas décadas retrata de modo bastante expressivo o déficit de direitos fundamentais a que está sujeita a população negra no país.” (Bueno et alii, 2021, pp.66-67)
[3] Vale aqui a menção à PEC 95 de 2019, que estava em vigor quando a pandemia foi declarada em março de 2020. Congelava o teto de gastos federais com saúde, retirava parte do financiamento do SUS, afetando as suas políticas mais relevantes, como a Estratégia de Saúde de Família, a Política Nacional de Imunização, as ações de Vigilância Epidemiológica e Sanitária, de Assistência Farmacêutica, do SAMU, da política de Aids/Hepatites, e várias outras. (cf. Lo Bianco & Costa-Moura, 2021).
Referências
Ariès, P. (1917). A história da morte no Ocidente. Rio: Nova Fronteira.
FBPS (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) (2022). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, vol. 16.
Bueno, S., Marques, D. & Pacheco, D. (2021). As mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil em 2020. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. FBPS, p.59-69.
Butler, J. (2018). Pode-se levar uma vida boa numa vida ruim? Cad. de Ética e Filosofia Política, SP, n.33, pp. 213-229 (original publicado em 2012).
Freud, S.(1996). Nuestra actitud hacia la muerte. Em Sigmund Freud Obras Completas, vol XIV, BsAs: Amorrortu editores, pp.290-302 (original publicado em 1915).
Instituto Fogo Cruzado (2023) Mais de 1.000 mortos em chacinas policiais no Grande Rio. Em https://fogocruzado.org.br/mil-mortos-chacinas-policiais-grande-rio. Consultado em 18 de fevereiro de 2023.
IPEA, FBSP & IJSN (2022). Atlas da Violência 2021. Em https://ipea.gov.br/atlasviolencia/publicações
Consultado em 18 de fevereiro de 2023.
Jamart, C. (1998). Du dévoir d’écrire. Communication faite au Colloque Soins Palliatifs à domicile – Continueté et Transmission. Centre de Santé Liégeois, Liège.
Lins, I. N. (2023). Da baixada à zona sul: caminhos da violência política de raça no Rio de Janeiro. Rev. bras. segur. Pública, SP, v.17, n.1,188-207.
Lo Bianco, A. C. & Costa-Moura, F. (2020). Covid 19: luto, morte e a sustentação do laço social. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 40, e244103, 1-11 https://doi.org/10.1590/1982-3703003244103
Mauss, M. (1969). L’expression obligatoire des sentiments. Œuvres. Paris: Les éditions de minuit ̧ pp. 269-279.
Mbembe, A. (2020). Necropolítica. São Paulo: n-1 edições.
Redeker, R. (1917). L’éclipse de la mort. Paris: Desclée de Browner.
Safatle,V. (2020). Para além da necropolítica. Em https://racismoambiental.net.br/2020/10/24/para-alem-da-necropolitica-por-vladimir-safatle/
Consultado em 20 de fevereiro de 2023.